segunda-feira, 23 de junho de 2014 | By: Clara Dawn

A casa de postigos verdes

Amada Clara, quando eu tiver de morrer, pensai de mim alguma coisa assim: que as crônicas e tudo o mais que escrevi foram inspirados nos teus beijos e, perdoai-me por ser tão humano, nas sombrias ondas do mundo a gargalhar na amplidão da alma. Que há, na lonjura do infinito, algum lugar que será sempre o Vale de Quimeras, idealizado em teu romance. Encontramos, um no outro, a segurança que não morre: nas conversas animadas de todas as manhãs; nas risadas livres a caçoar das nossas manias; nos cochichos ao pé do ouvido, no observar dos pássaros – nuvens que voam – sob o céu límpido da primavera. Ou na alegria do reencontro, no sono e no abandono do individuo para erguer o outro.

Construímos em nossas vidas uma casa em que o tempo ou as circunstâncias não derruba. Ganhamos, no jeito do viver, a paz inabalável onde a guerra do ego não pode. Mas a morte é um êmulo inelutável, um moinho que não pode parar. Por isso, quando eu tiver de morrer, pense mim com indulgência de amada.

Soai, clarins, soais por nós! Qual o pulsar frenético no eterno espírito da esperança; irmã da fé. Deste-me flores para amar-vos cada dia mais, caminhos para andar e rios de águas quentes com as bênçãos do sol. Movo-as no sentido de ficar sempre sob a luz benfazeja a despertar as sementes que criam novas possibilidades. Esse mesmo sol que aquece o barro é o mesmo que fora retirado de uma estrela perdida no universo. Pois é, despertastes meu sono letárgico e o sol do amor quebrou o encanto de quem não acreditava nessa forma poética de ver o mundo. Deus renova a minha fé para percorrer a estrada que me leva ao reencontro da amada.

Quero asas de borboleta para voar alto. Soai, clarins, soais por nós! Não permitas que o calor do sol derreta minhas asas de Ícaro. Que sejam eternas para voejarem acima de tudo. Contrario Alberto Caeiro: eu tenho que ter esperança e asas. Aqui viajo com Fernando pessoa: se tirar minhas asas fico perdido e largado no fundo de um barranco. Olho para a minha velhice e vejo rugas e cabelos brancos. Aí vem o caráter de Rubem Braga a lembrar a minha mineirice: olho essa cara feia e triste de gente do interior. Nas minhas crônicas já conversei sobre cidade, pescaria, lembranças. Eu fui criado na roça; sou caipira com orgulho. Prefiro o tom ameno da concórdia.

Não gosto de escrever sobre política nem falar mal dos outros. Este espaço no jornal é sagrado. Por esse motivo, a exemplo do chinês que coloca o resto de pão no lugar mais alto da casa, bendigo, na minha escrita, o dom de escrever. A utopia deve ser vista pelas frestas de uma casa de postigos verdes.

(Publicado no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 21 de junho de 2014)

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